Entre a Lei e o Salto: suspense policial e queer

Entrei a lei e o salto (no original High Heels) é um filme noir sul-coreano com um bocado de pancadaria e uma policial transgênero como personagem principal. Eu imagino que você esteja se perguntando como é que isso pode não ser transfóbico, e eu fico feliz em te falar que não é, não é mesmo. O melhor de tudo, tem na Netflix! E como eu não quero estragar as reviravoltas do enredo, o post de hoje é livre de spoilers.

man_on_high_heelsEm Entre a lei e o salto, Ji-wook trabalha como detetive e está no começo da sua transição, então a vemos fazer o tratamento hormonal mas na maior parte do tempo ela ainda se apresenta de forma masculina pra sociedade. Uma das coisas legais do filme é mostrar uma pessoa trans adulta, já na casa dos quarenta, no inicinho do processo. A gente vê mais exemplos de homens e mulheres trans jovens (a cartunista brasileira Laerte é outra exceção), o que faz pessoas transgênero sentirem medo de já ter “passado de hora” pra se assumir e transicionar. Vou usar esse espaço pra lembrar que não é, nunca é, tarde demais para começar a transição (e se você tem dúvidas, por favor abra os últimos links, eu prometo que vão te fazer bem). Uma crítica necessária é ter um ator cisgênero no papel principal. O cinema precisa quebrar o padrão e colocar mais atores e atrizes trans nas telas, ao invés de ficar dando prêmio pra gente cis que faz esse tipo de papel (sim, eu estou falando de Clube de Compras Dallas e A Garota Dinamarquesa).

Dito isso, Seung-won Cha está absolutamente incrível. Não nego que eu me apaixonei. Enquanto policial, Seung-won é implacável e tem toda aquela atmosfera austera, quase cruel. As cenas de luta são o máximo (eu fiquei babando na primeira sequência inteira). E aí de repente a personagem mostra tanta vulnerabilidade, tanto sentimento – como quando Ji-wook vai à clínica receber as injeções. Seung-won interpreta a detetive com muita sensibilidade e respeito, e o resultado é uma performance maravilhosa.

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Seung-won Cha no papel de Ji-wook (Fonte)

Preciso dizer também que não é um filme leve e nem com um final feliz, mas cabem algumas considerações. Em primeiro lugar, a história não transforma a transexualidade de Ji-wook em um espetáculo de tragédia  ao contrário de tantos dramas LGBT, como Brokeback Mountain e o próprio A garota dinamarquesa. Isso é importante. A questão não é que filmes queer não podem ser tristes, mas como o cinema constantemente explora a dor de pessoas gays e transsexuais, usando a violência contra essas pessoas como artifício pra chocar, pra impressionar o público e a crítica. Temas como suicídio e assassinato motivado por homofobia ou transfobia são recorrentes. Isso não é – ou não devia ser – representatividade. Olha que um dos meus filmes favortios é Felizes juntos (Wong Kar Wai). Apesar de tristíssimo, o drama em Felizes Juntos não é a sexualidade dos personagens, mas o fato deles se gostarem e mesmo assim não serem capazes de manter um relacionamento saudável. Viu a diferença?

Já Entre a lei e o salto tem toda uma trama policial e não economiza na ação. O gênero da detetive, embora seja um ponto significativo no enredo, não é o único aspecto da sua personalidade. A policial é uma personagem complexa e multifacetada, escrita de maneira sensível pelo diretor Jin Jang. O final partiu meu coração em mil pedaços, mas é apropriado pro filme noir (surpreendente, ambíguo, pessimista). O mesmo pode ser dito sobre a tristeza que Ji-wook carrega, uma tristeza que vocês podem ver nas fotos que eu escolhi pra ilustrar o texto hoje. Até a violência de algumas cenas, que às vezes fica bem gráfica, é característica comum do estilo noir. Igual quando a gente assiste um terror trash e queer: aí eu sim entendo que os personagens morrem, porque nesse tipo de filme, todo mundo morre! Além do mais, o enredo de Entre a lei e o salto levanta questionamentos pertinentes à transsexualidade: a duvida torturante entre fazer ou não a transição, a transfobia internalizada, a forma como algumas pessoas – mesmo sendo absolutamente infelizes – decidem nunca se assumir.  

De fato, não é uma história leve. Se você não gosta de violência, pode ser difícil assistir. Apesar disso, é um filme interessante, com uma perspectiva que foge à ideia do “amor que vira tragédia” tão batida nos dramas LGBT. Eu gostei muito, e se você quer ver um suspense policial com uma boa dose de pancada, recomendo!


Vocês devem ter notado que eu usei pronomes femininos ou neutros ao longo do texto. Independente de já ter feito (ou não) a cirurgia, Ji-wook se identifica como mulher e é assim que eu sempre vou me referir a ela. Pessoas trans devem ser tratadas pelo gênero com que se identificam, não importa em qual estágio da transição estejam.


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