Special tem um protagonista gay com paralisia cerebral e um senso de humor irreverente

Acabou de chegar na Netflix uma série maravilhosa e hilária, que eu preciso apresentar pra vocês: Special. Quem gostou de My mad fat diary ou Please like me, com toda certeza vai adorar. O que é engraçado porque Special é uma produção americana, mas também consegue manter aquele senso de humor ácido, que é ao mesmo tempo desconfortável e tão familiar. Eu costumo dizer que eu não sou muito fã de comédia – Brooklyn 99 é uma exceção, como vocês sabem – mas esse aqui é o tipo de humor que eu curto. Special me fez rir alto em vários momentos. Se eu tivesse que definir a série, eu diria que ela é uma espécie de comédia dramática do dia a dia.

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O protagonista Ryan Hayes, com os amigos Kim e Carey em Special (Fonte)

Baseado em uma história real

Em Special a gente conhece Ryan Hayes, um rapaz de vinte e oito anos que mora com a mãe e vai começar um estágio (não-remunerado) em um site que produz artigos virais, desses que a gente adora acessar quando está procrastinando. Logo no primeiro dia ele faz amizade com a colega Kim Laghari (Punam Patel), a escritora mais prestigiada do tal site. Kim incentiva Ryan a buscar independência e o apresenta aos seus amigos, como o também jornalista Carey (Augustus Prew). Ryan ainda tem uma mãe amorosa, mas um pouco controladora. Karen Hayes (Jessica Hecht) é uma enfermeira que trabalha duro e criou o filho sozinha, já que o pai dele abandonou a família faz mais de vinte anos. Ela se desdobra entre a casa onde vive com Ryan, o hospital, e a casa da sua mãe idosa, que embora more sozinha, sempre precisa de assistência e companhia.

Special é uma produção autobiográfica, baseada no livro I’m special: and other lies we tell ourselves escrito por Ryan O’Connell, que também é roteirista e ator principal da série. Assim como O’Connell, o protagonista é escritor, é gay, e tem paralisia cerebral. E essa é a grande sacada da série! Não apenas a diversidade que ela acrescenta às produções de hoje – ainda tão necessária – mas essa autenticidade, essa cara original que a torna mais fascinante a cada episódio. E a Netflix ainda está apresentando um formato novo: os episódios são curtinhos, em torno de quinze minutos. No fim das contas a gente fica é querendo mais, e a primeira temporada passa voando! Eu vi tudo em dois dias e estou sofrendo por ter que esperar até o próximo ano para continuar assistindo.

Vocês se lembram do que eu comentei sobre lugar de fala, não é? Special é sensacional exatamente por ter sido escrita pelo Ryan. Ele fala sobre a própria experiência, e brinca com situações absurdas que ele passou, convidando o público a rir junto com ele. Ryan O’Connell é alguém que tem propriedade pra falar sobre a realidade de um homem gay com paralisia cerebral, porque ele é um homem gay com paralisia cerebral. Ao invés de usar a deficiência desse personagem apenas como mecanismo de enredo, ou como uma motivação para o desenvolvimento de outros personagens, Ryan é sem dúvida tratado como o protagonista da sua própria história. Mesmo quando outras pessoas recebem destaque na trama – por exemplo a mãe dele, que também tem um arco de crescimento pessoal – a narrativa não tira a autonomia do seu personagem. Pelo contrário, a série é toda sobre o Ryan tentando encontrar o lugar dele no mundo, com o apoio das pessoas que ele ama, como sua mãe e seus melhores amigos. É a grande diferença entre Special e produções como Atypical e Fragmentado. Embora esses títulos também se proponham a retratar grupos marginalizados – e claramente fizeram pesquisas a respeito – os dois cometeram um erro grave ao não incluir pessoas desses mesmos grupos na produção. O resultado é que Fragmentado apresenta um retrato grosseiro e equivocado sobre as pessoas com TDI, enquanto Atypical se torna uma crônica não sobre o protagonista que tem autismo, mas sobre como a família sofre com isso.

Um erro que Special não comete, porque garante que o protagonismo seja do Ryan – o que vai muito além de elegê-lo como personagem-título. A autonomia do personagem é evidenciada por um enredo que dá lhe dá espaço e voz ativa, que permite que Ryan fale por si mesmo e tenha sua opinião respeitada, que não transforma os sentimentos e as necessidades dele em um “fardo” para outros personagens.

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Ryan O’Connell como Ryan Hayes, um papel autobiográfico (Fonte)

Sabem do que mais? Ryan não tinha qualquer experiência como ator. Mesmo enquanto escrevia o roteiro inicial, ele não pretendia acumular a função de protagonista. “Eu não tinha o menor desejo de atuar”, Ryan O’Connell confessou à revista Vulture. Como a produção tinha um baixo orçamento, eles não poderiam contratar um ator profissional que se encaixasse no perfil. Foi aí que o escritor decidiu entrar em nessa – eu fico muito feliz, porque a performance dele é uma das melhores coisas em Special! Além, é claro, de permitir que o público conheça um protagonista com paralisia cerebral, não mais um ator sem nenhuma deficiência interpretando um papel.

Do ponto de vista da representatividade isso é importantíssimo, e muito, muito raro. Já passou da hora de atores e atrizes com deficiência terem oportunidade de representar a sua própria realidade na ficção. Personagens com deficiência são uma exceção, mas é ainda mais difícil ver esses profissionais nas telas.

No “armário” sobre ser gay e deficiente

Um dos aspectos mais interessantes da série – e da história particular do roteirista – é que Ryan esteve no armário não apenas sobre ser gay, mas sobre ter paralisia cerebral. Quando Ryan O’Connell se mudou para Nova York, todas pessoas que ele conheceu ali pensavam que ele mancava por causa de um acidente de carro recente, e não graças às sequelas da doença. “Eu nunca os corrigi porque, a meu ver, eu nunca me identifiquei com o fato de ter paralisia cerebral”, contou o escritor à Vulture“Meu caso era muito leve, e no fundo eu sempre procurava qualquer oportunidade para me distanciar da paralisia cerebral”. Para O’Connell, a deficiência era o aspecto mais problemático da sua identidade. Em uma entrevista para o New York Times Ryan disse que se descobriu gay aos doze anos e, apesar da insegurança natural sobre a sua sexualidade, ele sempre teve mais dificuldade em aceitar sua condição física.

“Eu tive muita sorte por ter uma família e tantos amigos que me apoiaram, então esse nunca foi o meu maior problema, nunca foi ‘a minha cruz’. Ser deficiente é que fazia com que eu tivesse vergonha, desde muito novo. Enquanto estava crescendo eu fiz várias cirurgias, eu estava sempre na fisioterapia, tinha que usar aparelho nas pernas. Claro que, nessa sociedade capacitista em que a gente vive, você só quer ser igual a todo mundo.

É essa que sempre foi a minha luta – aceitar essa parte de mim mesmo, e não tentar fugir disso a todo custo.”

 

Ryan O’Connell
roteirista, ator e escritor

 

A relação complicada do autor com a paralisa cerebral é abordada em Special, que traz esse “mal entendido” em torno do acidente de carro como o dilema central da primeira temporada. A gente não vê o momento em que o protagonista “abre o jogo” a respeito da sua sexualidade porque isso já aconteceu há mais tempo. A mãe dele, seus amigos e até a chefe sabem que ele é gay, e ninguém tem problema com isso. Não é essa faceta da sua identidade que o personagem tenta esconder ou disfarçar. Por outro lado, Ryan ainda está em negação sobre a paralisia cerebral e as suas implicações cotidianas. Ele não parece inseguro a respeito da sexualidade, exceto em um momento: quando ela se sobrepõe à sua deficiência. Isso aparece, principalmente, na sua vida amorosa.

Não é de estranhar. Existe muito preconceito contra pessoas que tem deficiência física, principalmente no meio LGBT. A nossa sociedade cultua um “corpo perfeito”, e isso não diz respeito apenas aos padrões de beleza. Pessoas que fogem do padrão considerado por muitos como “normal” (leia-se: sem nenhuma deficiência aparente) são colocadas à margem em muitos grupos e situações sociais. Apesar dos esforços direcionados para a inclusão e a acessibilidade nos ambientes gays, nem todos os espaços estão abertos pra receber frequentadores com deficiência. Mais que isso, a invisibilidade dessas pessoas dentro da própria comunidade LGBT é um problema real, assim como a discriminação. Special mostra sem nenhum puder que deficiência física não é sinônimo de abstinência sexual, pelo contrário, embora muita gente ainda acredite nisso.

“Sendo deficiente nesse mundo, você encontra muita gente babaca. Pessoas que vão te infantilizar e que não vão saber como tratar você.”

 

Ryan O’Connell
roteirista, ator e escritor

 

A série aborda muito bem a intersecção entre sexualidade e deficiência e, mesmo que o desafio de Ryan seja abraçar a sua condição física, Special não ignora a importância de ter um protagonista gay. O’Connell, junto com os outros produtores, tem a consciência de que representação LGBT na mídia é algo fundamental. O roteirista, inclusive, falou que pretende escalar atores LGBT para os personagens LGBT. “É porque que acho que pessoas hétero não podem interpretar gays? Não” disse Ryan ao site The Wrap, “mas eu sei que muitos atores gays de talento não recebem as mesmas oportunidades que os atores heterossexuais, por serem gays”. Assim como o diretor Jordan Peele, que faz questão de escalar protagonistas negros nos seus filmes, a decisão de O’Connell é uma atitude política que tenta acrescentar mais diversidade ao entretenimento. E como em Crônicas de San Francisco, Special também traz profissionais LGBT atrás das câmeras. O ator Jim Parsons (famoso por interpretar o Sheldon de The Big Bang Theory) que é gay, é um dos produtores executivos junto com Ryan.

Dinâmica entre mãe e filho com deficiência

Nós precisamos falar sobre a Karen, mãe do Ryan. Ela é uma excelente personagem! Eu estou torcendo tanto para ela, gente, a Karen merece ser feliz. Desde o início fica bem claro que ela ama o Ryan, aceita o filho, e só quer o melhor para ele. Além disso, os dois tem uma amizade legal, algo que a gente nem sempre vê em famílias com filhos LGBT. Ela tem, sim, esse lado meio super-protetor, mas em nenhum momento chega a ser algo disfuncional ou abusivo. A Karen se preocupa com o Ryan como qualquer mãe ou pai deveria se preocupar, e está disposta a ouvir e entender o filho. Mais importante, ela respeita as decisões dele. Por exemplo, quando o Ryan diz que quer morar sozinho, no primeiro momento a Karen reage com visível apreensão. Só que ela jamais o impede de fazer mudança. Ao contrário, ela concorda, e se oferece para ajudar Ryan a encontrar o apartamento ideal. E ajuda mesmo, nada de tentar fazer ele mudar de ideia ou sabotar a mudança do filho para a casa nova. 

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Karen junto com o filho Ryan em um momento carinhoso (Fonte)

Isso não significa, porém, que não existam conflitos na relação deles – conflitos muito naturais no ambiente familiar. Ryan e a mãe tem uma relação de dependência, que veio dos dois lados. Graças à paralisia cerebral, cuidar do filho sempre foi uma grande parte da vida da Karen, mas ela também sente necessidade da companhia e da amizade dele. Por outro lado, Ryan quer independência, mas ainda recorre à mãe quando precisa de ajuda com problemas tão corriqueiros como uma privada entupida. É uma relação onde os dois precisam crescer. Ryan precisa aprender a respeitar a individualidade da mãe, e entender que, às vezes, é ele quem deve assumir o papel de ajudá-la. Karen precisa dar o espaço que o filho deseja agora, mas também deve entender que, de vez em quando, Ryan ainda vai recorrer a ela para preencher as lacunas do seu aprendizado. Como na cena em que os dois estão cozinhando e a mãe tenta ensiná-lo a quebrar um ovo.

Esse momento em particular levanta uma questão interessante. Talvez Karen pudesse ter ensinado o Ryan a fazer isso antes, ou talvez ela pudesse ter comprado um utensílio para ajudar ele a quebrar os ovos (que pode ser muito útil para quem não tem uma das mãos, ou tem problemas de coordenação motora). Só que é justo culpar a mãe por isso, por não ter ensinado o Ryan a quebrar um ovo anos atrás? Eu acho que não. Na série, a Karen é uma mãe que procura dar ao filho tudo que ele precisa para lidar com o mundo da melhor forma possível, independente da sua deficiência. A paralisia cerebral trouxe algumas barreiras para o Ryan, e é natural que ele não tenha aprendido a fazer certas atividades que parecem tão comuns. Por isso é importante que ele tenha oportunidade de continuar esse processo de aprendizado. Pelo que a gente já viu em Special, a Karen sabe disso, e tem toda a intenção de ajudar o filho. Ryan tem uma ótima mãe.

Um detalhe que me chamou atenção e eu acho que nem todo mundo vai pegar (porque é mencionado muito rapidamente), é que a Karen queria ser médica. Tem uma hora que ela está ajudando a mãe dela, que pede para ver um médico – e a Karen lembra que ela é uma enfermeira, muito capacitada para lidar com a situação. A sua mãe então retruca “mas você não é médica” e a Karen responde algo como “às vezes os planos mudam”. Dá a entender que ela tentou, ou ao menos planejava, seguir a profissão. A gente ainda não sabe se o plano não deu certo por causa do casamento, ou da separação, ou se teve algo a ver com a paralisia cerebral do Ryan… E, até o momento, eu gostei da forma como a série abordou o assunto.

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Kim e Ryan trabalham juntos e viram melhores amigos em Special (Netflix)

É aquilo que eu disse lá em cima: Special não deixa de abordar os dramas e dilemas dos outros personagens, como a mãe do Ryan ou a melhor amiga dele, a Kim – mas nem por isso a série tira do Ryan seu lugar de protagonismo. Além de ter um personagem central que é bem construído e com quem o publico pode se relacionar, Special apresenta um excelente elenco de apoio. Sem atropelar a autonomia do protagonista.  E como o texto de hoje já estava enorme (para variar), eu vou encerrando por aqui!

Fica a minha recomendação: se você está procurando uma série de humor divertida, e talvez meio cínica, mas com um romance gay adorável, assista Special! Eu confesso que eu peguei para assistir só por essa questão da representatividade, já que esse é sempre o foco da nossa discussão aqui no Estanteante. Acabei me apaixonando pelo Ryan e me divertindo com o senso de humor dele. Espero que vocês também gostem!


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