No início da semana, eu postei a primeira parte do texto sobre Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald. Até aqui eu falei sobre o que eu achei do filme de uma maneira geral, e contei para vocês o que eu curti e o que eu mudaria no enredo. Hoje eu já quero fazer uma análise mais crítica, abordando exemplos de racismo, homofobia, machismo e misoginia na produção. Isso mesmo, galera: senta que lá vem textão.
Eu imagino que parece meio estranho eu dizer que gostei do filme e, mesmo assim, ter tanta coisa para criticar – como aconteceu com Rocky Horror Picture Show. A questão é que eu acredito na importância de analisar com senso crítico justo as obras que a gente gosta, porque é assim que a gente desenvolve um olhar consciente sobre essas mídias e produtos de entretenimento que nós consumimos. É fácil criticar um livro que não faz meu estilo de leitura, por exemplo, ou um filme que eu nunca assistiria porque não é de um gênero que eu curto. Por outro lado, reconhecer falhas nas produções que a gente adora é um exercício de autocrítica. Como fãs, às vezes a gente ignora (nem sempre de forma consciente) as mancadas dos nossos ídolos, ou das nossas produções favoritas. E é justamente quando nós devemos prestar mais atenção.
Gostar daquele filme, série ou livro que seja um pouco (ou muito) problemático não é o fim do mundo. Só que é preciso ter consciência crítica, estar aberto às reflexões sobre o conteúdo e admitir que algumas partes são problemáticas, sim. Especialmente quando envolve situações como racismo e transfobia. Isso não te faz menos fã, pelo contrário! A gente pode muito bem (e deve) curtir uma obra reconhecendo os momentos em que ela erra ou desaponta. É o que eu tento fazer com tudo o que eu assisto e leio.
Sobre o racismo de Hollywood
Convenhamos, um ponto muito problemático em todo o universo de Harry Potter é a representatividade de personagens não-brancos. E eu estou falando dos livros também. Não apenas os três personagens centrais (Harry, Rony e Hermione) são brancos, como a maior parte dos personagens que tem relevância para a história também é. “Ah, mas o Quim Shacklebolt é negro” – claro, mas ele é uma exceção. Dá para contar nos dedos os personagens negros de Harry Potter. Não vou nem brincar dizendo que nós temos mais Weasleys que pessoas negras na saga, porque isso provavelmente é verdade.
A Armada de Dumbledore. Ao incluir um ou outro ator que não seja branco no elenco de apoio secundário, cria-se uma ilusão de diversidade. Isso é uma fachada. (Fonte)
Uma coisa que a Rowling faz em todos os livros da série é inserir personagens de etnias diferentes como pano de fundo, criando uma falsa sensação de diversidade. Falsa sim, porque esses personagens são relegados a papéis secundários, nós vemos muito pouco da sua história e parecem servir mais como objeto para motivar o desenvolvimento dos protagonistas. A gente tem as irmãs Patil, que são indianas; a Cho que é chinesa (aliás, a Rowling nunca esclareceu qual é a etnia da Cho, além de asiática – os fãs especularam por anos se ela é chinesa ou coreana e a autora simplesmente nunca respondeu isso); e o Blásio e o Dino, que são negros… Todos eles com papéis bem pequenos na série. Nós podemos citar ainda personagens como Lino Jordan e Angelina Johnson, que também são negros e têm uma presença ainda menor na história, mesmo que Angelina tenha se casado com Jorge Weasley depois. Pode ser que a essa altura você esteja dizendo “ah, mas todos os outros alunos além do Harry, da Mione e do Rony são secundários”. Isso é uma falácia. Sim, os outros estudantes de Hogwarts são secundários, mas alguns deles tem participações maiores que acabam influenciando o rumo da narrativa – e todos esses, sem exceção, são brancos: Luna Lovegood, Neville Longbottom, Gina Weasley e até o Draco Malfoy, como antagonista.
Vou abrir uma tangente aqui só para a gente entender quando um personagem, mesmo não sendo um dos protagonistas, tem relevância para a narrativa. O “truque” é você se perguntar, “se ele ou ela não existisse, o quanto isso impactaria na história? Será que ele ou ela poderia ser facilmente substituído por outro personagem que realizasse as mesmas ações?” Quando a resposta é afirmativa, o personagem é muito mais parte da ambientação do que do elenco.
Agora, vamos aplicar isso aos nomes citados no parágrafo anterior. O Blásio Zabini e o Dino Thomas poderiam ser substituídos por qualquer outro personagem sem grandes repercussões no enredo, assim como as gêmeas Patil, cuja participação mais relevante foi, sei lá, ter ido ao Baile de Inverno com o Ron e o Harry. Um dos pontos-chave ali é que o Ron não convidou a Hermione, mas ficou morto de ciúmes ao vê-la acompanhando o Viktor Krum e ignorou o seu par a noite inteira. Rony não precisava ter convidado a Padma Patil para que isso acontecesse, ele poderia ter levado qualquer outra pessoa ao Baile e o resultado seria o mesmo. Na boa, se ele tivesse ido sozinho, o resultado ainda seria o mesmo – e que cena interessante a gente teria se ele e o Harry, sem conseguir achar um par, resolvessem ir juntos ao Baile de Inverno! O que, bem, não vem ao caso. Voltando ao racismo, a gente pode dizer a mesma coisa sobre a Cho Chang. É, o Harry gostava dela quando ela era a namorada do Cedrico (mais um garoto branco), mas não foi isso que criou a rivalidade entre eles. Além de ambos jogarem Quadribol na mesma posição, o principal motivo da “competição” sempre foi o Torneio Tribruxo. Ou seja, se a Cho não existisse, ou se ela fosse apenas namorada do Cedrico e não tivesse qualquer relação com o Harry, pouca coisa seria diferente no enredo. Não é com ela que o Harry fica, no final das contas! E não é interessante que ela exista, também, apenas como um interesse romântico para personagens masculinos, que tem papéis mais significativos a desempenhar na história? Só que aí eu já estou entrando no próximo aspecto da minha crítica, então por hora vamos nos ater ao racismo velado da saga.
Já que eu estou desenterrando todos esqueletos no armário de Harry Potter, não dá pra gente esquecer o caso da Lilá Brown. Nos primeiros filmes, quando ela aparecia só no canto das cenas fazendo figuração, Lilá foi interpretada por atrizes negras – Jennifer Smith e Kathleen Cauley. Depois, quando os livros revelaram que ela se tornaria um interesse romântico pro Rony, colocaram a Jessie Cave no papel – uma atriz branca, loira, dos olhos claros. Quem precisa de continuidade quando a gente tem racismo, não é mesmo? E, recentemente, quando saiu o livro Harry Potter e a criança amaldiçoada e uma atriz negra foi escolhida para interpretar a Hermione, uma bando de gente racista achou ruim. Ainda que nos livros não seja dito, em nenhum momento, que ela é branca. O caso da Lilá reflete a solidão da mulher negra, que existe tanto na vida real quanto na ficção. O da Hermione expõe o racismo descarado de parte do público, que aceita pessoas negras nas produções, mas não em posição de destaque, não no lugar dos seus personagens queridinhos.
A atriz Noma Dumezweni interpretou Hermione Granger, junto com Paul Thornley (Ron Weasley) e Cherrelle Skeete, que fez a filha deles, Rose Granger-Weasley (Fonte)
Até aqui eu falei apenas sobre Harry Potter para vocês entenderem que a série tem um histórico de apresentar protonistas brancos, enquanto joga pra escanteio personagens de outras etnias – embora eles existam para compor o cenário. A análise que a gente fez aqui sobre os estudantes se estende aos personagens adultos, basta você se perguntar quantos professores de Hogwarts não são brancos, ou ainda, entre os adultos que têm importância na série (como os que fazem parte da Ordem da Fênix e os que trabalham no Ministério, e até mesmo os vilões) quantos tem uma etnia que não seja branca. Pois é, o racismo não se trata apenas de ofensas e xingamentos. Apagamento e ausência de representatividade também são condutas racistas.
Contudo o primeiro livro da saga – Harry Potter e a pedra filosofal – foi lançado em 1997. Nós podemos dizer, “talvez isso seja meio racista, mas vários livros e filmes que a gente curtia na época eram, não tinha essa discussão sobre representatividade”. Eu concordo plenamente. Só que a gente esperava que, como Animais Fantásticos está sendo feito duas décadas depois, os filmes fossem… vocês sabem, menos racistas. Eles não são, é aí que está o grande problema.
Em Animais Fantásticos e onde habitam, a única personagem que não é branca e tem um impacto na narrativa é a Seraphina Picquery, interpretada pela atriz Carmen Ejogo. A gente até vê bruxos de várias partes do mundo quando o conselho se reúne no Macusa, mas nenhum deles têm uma história própria ou uma participação relevante. Dominique Tipper interpreta uma personagem que também não recebeu nem nome nos créditos, chamada apenas de Auror 1. E embora a presença da Seraphina seja muito legal – uma mulher negra como Presidente do mundo mágico nos Estados Unidos – o seu papel na história é ínfimo. Outros personagens de maior destaque, mesmo que secundários, são mais uma vez todos brancos: Tina, Queenie, Jacob, Credence (além de sua mãe e irmãs adotivas). Sem contar Newt e Percival Graves, o antagonista do primeiro filme. A nova franquia está cometendo os mesmos erros da saga Harry Potter no que diz respeito à falta de personagens que não sejam brancos, vinte anos depois. Não tem outro nome para isso, galera. É racismo.
Os crimes de Grindelwald até tenta incluir alguma diversidade, porém, de novo joga os personagens de lado. Arnold Guzman poderia ter sido interessantíssimo na trama, mas a sua figura não é bem explorada (o que poderia ter sido, por exemplo, se eles tivessem inserido um segundo filme entre os dois primeiros, como eu sugeri no texto anterior). E o ator Cornell John nem aparece em muitos dos principais materiais de divulgação – como a foto que ilustra o cabeçalho do post de hoje. Leta Lestrange, interpretada pela maravilhosa Zoë Kravitz, também merecia mais. Ao invés disso, ela teve pouco espaço na narrativa e ainda por cima morreu, ou seja: a gente não tem qualquer esperança que a personagem ganhe uma história melhor nos próximos filmes. Por último, a Nagini, que apesar da performance adorável da Claudia Kim já é um estereótipo racista.
Por causa de uma maldição, Nagini vira uma cobra todas as noites. Eventualmente ela vai se tornar incapaz de se transformar em humana de novo (Warner Bros)
Claudia é sul coreana. Agora vocês me perguntam: e qual é o problema? Não era você que estava pedindo mais representação? É, só que eu pedi boa representação, e ganhei um clichê racista. Nagini parece ser, na verdade, uma junção de dois estereótipos muito presentes no cinema hollywoodiano quando falamos sobre mulheres asiáticas: a Dragon Lady e a China Doll, ou a “bonequinha de porcelana”.
A figura da Dragon Lady se baseia, principalmente, na mistificação da mulher oriental. Ela é misteriosa e exótica, porque vem de uma terra estrangeira. Bela, mas perigosa, e muitas vezes fatal. Embora a Nagini não seja agressiva em sua forma humana, ela ataca quando vira cobra e é descrita como uma criatura de alta periculosidade. Eu fiz questão de dizer criatura porque é assim que ela é retratada no mundo de Animais Fantásticos: menos que um ser humano, um dos animais mágicos que é exibido como atração em um espetáculo, presa numa jaula, e descrita pelo dono do circo como aberração. Claro, o próprio Credence também é chamado dessa forma, mas a trajetória dele é humanizada. Ao contrário da Nagini, nós o conhecemos antes de ser revelado que ele é um Obscuro. O público conhece a história do Credence e tem a oportunidade de empatizar com ele, além do fato dele ser um dos personagens principais, com maior autonomia e destaque no enredo – e, no fim das contas, nós ainda descobrimos que ele vem de uma linhagem poderosa de bruxos. Uma narrativa vastamente diferente da que a Nagini recebe.
Animais Fantásticos transforma um dos poucos personagens que não são brancos, e a única mulher asiática da franquia, num exemplo de mistificação e objetificação. Como se não bastasse, a gente já sabe que no futuro a Nagini vai se tornar a famosa cobra do Voldemort. Sem meias palavras: ela é uma mulher asiática – portanto, não-branca – que foi relegada a uma posição sub-humana, exibida como animal exótico, e ainda vai virar o bichinho de estimação do cara que é equivalente a Hitler no mundo da magia. É aí que a figura da Dragon Lady (uma mulher mágica, exótica e misteriosa, que oferece um enorme perigo) dá lugar à China Doll: a ideia da mulher asiática que está sempre em uma posição servil, submissa ao homem branco. Eu já linkei esse texto como referência lá em cima e vou linkar de novo, e não deixem de ler.
A forma como a Nagini é mostrada em Os crimes de Grindelwald faz parecer que J. K. Rowling estava brincando de um jogo chamado “quantos estereótipos racistas sobre mulheres asiáticas eu consigo enfiar em uma personagem”. E é uma pena, porque eu acho que a Claudia Kim teria feito um excelente papel se tivesse um material adequado para trabalhar. Inclusive abordando suas origens coreanas.
Misoginia e machismo
Vocês perceberam que eu já entrei um pouco nesse tema do machismo ali em cima, ao falar sobre a Leta e a Nagini, né? A verdade é Os crimes de Grindelwald só presta um desserviço enorme às suas personagens femininas. Uma coisa que Animais Fantásticos e onde habitam não faz! Enquanto no primeiro a Tina aparece como uma personagem relevante e cheia de autonomia, e outras mulheres da trama – Queenie e a Presidente Picquery – também tem os seus momentos de destaque, no segundo filme da série elas ficam simplesmente apagadas. Eu mencionei no texto anterior que o desenvolvimento de todos os personagens é prejudicado pelo salto temporal da história, mas quem sofre mais com isso sem dúvida são as mulheres.
Para começo de conversa, as mulheres do filme parecem existir apenas de acordo com a sua relação com um homem. Até a foto de divulgação sugere isso! Leta Lestrange é a futura esposa de Theseus Scamander (e antigo amor do Newt, sempre como interesse romântico), Nagini é uma espécie de ajudante de Credence, e Queenie é a namorada do Jacob. A exceção seria a Tina que, por sua vez, aparece menos e tem uma participação menos impressionante que no primeiro título da saga. Deveria ser justo o contrário, porque já foi estabelecido que a Tina é uma personagem recorrente na série, que deve continuar na história até o final. Só que, assim como o racismo, a misoginia é mais forte que a coerência por aqui.
Cada um com o seu par – tirando os dois caras que são gays, porque eles sim tem que ficar em lados totalmente opostos da sala antes que os fãs comecem a ter ideias (Warner Bros)
Que tal a gente falar das personagens femininas uma por uma, então?
A Nagini, além de um estereótipo racista, não tem motivação própria no enredo. Pelo menos, não que a gente saiba, né? Ela está apenas ajudando o Credence, protegendo o Credence, e andando pela Europa atrás da mãe do Credence. Todos os objetivos dela, até o momento, não passam dos objetivos dele – e ele ainda a abandona no final. Nós podemos fazer suposições, claro. Talvez ele tenha prometido ajudá-la a fugir do circo se ela o ajudasse a encontrar sua família. Talvez eles tenham se identificado por serem os dois vistos como alheios ao mundo mágico, como criaturas ao invés de seres humanos, e a partir daí tenha surgido uma amizade. Talvez eles tenham se apaixonado, quem sabe? Ninguém, porque o filme jamais mostrou isso para a gente. Talvez ela estivesse mesmo planejando comer o Credence no jantar e a mãe dele como sobremesa, já que ela é uma cobra gigante e mais de duas horas de filme me contaram QUASE NADA sobre a relação dos dois. Pode ser que o título seguinte “amarre” as pontas soltas – por que a Nagini parece ser tão leal ao Credence, quando ele claramente não compartilha o sentimento? – mas isso não é mistério. Não é suspense. Isso é um enredo fraco que acha que, se jogar um monte de revelações bombásticas na cara do público, a gente não vai prestar atenção no fato de que o argumento narrativo é desleixado. E um tantinho machista.
Queenie, por outro lado, parece ter sido substituída pela sua gêmea malvada. Ela está… irreconhecível. Não há nenhum traço da bruxa leve, carismática e divertida que a gente viu no primeiro filme. O pior é que eu até entendo o que a Rowling quis fazer com o arco narrativo da personagem, só acho que foi mal executado. Brutalmente mal executado. A proposta é mostrar que até as pessoas mais doces, até quem a gente menos espera, podem ser seduzidas por um discurso de ódio, se estiverem desacreditadas o bastante. E sabe de uma coisa? Isso é ponto crucial, que precisa ser discutido mesmo – ainda mais nos dias atuais. Teria sido uma proposta interessante se o público tivesse a chance de acompanhar a transformação da Queenie, de uma mulher otimista, meiga e carinhosa, que tenta sempre ver o melhor lado da situação, para uma pessoa tão desiludida com o mundo a ponto de acreditar que alguém que prega apenas ódio, violência e preconceito pode ser a solução do problema. Como a gente não viu porque a franquia escolheu não mostrar isso, fica parecendo que a Queenie perdeu toda a noção da realidade de um dia para o outro – ou que foi substituída por um clone maligno.
De personagem favorita para muitos espectadores, que conquistou os nossos corações em Animais fantásticos e onde habitam, a Queenie passa a ser essa figura meio tola, meio delirante, cuja motivação pra apoiar um vilão hediondo não faz muito sentido. Afinal, a gente sabe muito bem que o plano do Grindelwald inclui exterminar o Jacob! Claro, nós podemos dizer, “bem, a Queenie pode ter pensado que ele acabaria com os trouxas mas pouparia o Jacob, por causa da sua ligação com ela”. Isso levanta um debate muito válido, e seria um argumento excelente que eu adoraria ter visto no cinema, mas eu não vi já que o filme em momento algum toca nesse ponto. Então a Queenie continua parecendo meio tola, meio delirante, sem um pingo de senso crítico. Só porque a Rowling queria que o Grindelwald tivesse do seu lado um bruxo com capacidade de ler mentes. Toda a caracterização e o desenvolvimento de uma personagem feminina jogados pela janela, para ela servir como instrumento para avançar o arco narrativo do vilão – que, não por acaso, é um homem. Eu disse que Os crimes de Grindelwald trata muito mal as suas mulheres, não disse?
Por último, a Leta Lestrange. Eu já pontuei aqui que o papel dela é, acima de tudo, ser o interesse romântico pro Theseus e pro Newt – afinal, é por causa da Leta que a Tina se afasta dele. E ela cai naquele clichê terrível da ficção em que uma mulher, sempre uma mulher, acaba morrendo de forma trágica apenas para dar motivação a um personagem masculino. Isso é, sim, um sintoma da misoginia na ficção (e não vamos esquecer que o mesmo acontece com a ama do Credence quando bebê, e a mãe do Arnold). Além disso, a Leta é outra que recebe uma construção muito pobre no filme.
Sejamos sinceros: pelo jeito que Newt falou sobre a Leta em Animais fantásticos e onde habitam, a gente esperava que ela fosse uma vaca – pra não usar termo pior. Ela parece egoísta e vaidosa, e partiu o coração dele ao trocar o Newt pelo irmão Theseus. Não dá pra simpatizar com uma personagem assim, certo? Além, claro, dela ser uma Lestrange, uma família de puro-sangues notória pela sua associação com as artes das trevas. Aí a gente conhece a Leta em Os crimes de Grindelwald. Ela não é, de forma alguma, uma pessoa má. Se muito, ela foi uma criança que cresceu em um ambiente familiar tóxico e abusivo, que foi ostracizada na infância e na vida adulta, que cometeu um erro quando menina e nunca deixou de se culpar por ele. Ela é uma personagem complexa e com um potencial enorme que, mais uma vez, foi desperdiçado.
O público nunca a chega a saber de verdade, a entender, o que houve entre ela e Newt, e porque Leta escolheu Theseus. A gente percebe nas entrelinhas que ela se apaixonou por ele – e o ama o ponto de se sacrificar, caso isso dê a ele uma chance de sobreviver – mas a gente nem chega a ver a relação, essa cumplicidade entre eles. A cena em que Dumbledore tenta dizer a Leta que ela era uma boa aluna, e uma boa pessoa, é bonita, mas ela nunca encontra de verdade sua redenção. Até o momento da sua morte, Leta ainda acredita que ela é um monstro e não merece simpatia ou compaixão. No final, o seu sacrifício não é o desefecho da sua história, porque não desenvolve a trajetória da personagem, serve apenas como um artifício pra impelir os protagonistas masculinos em direção ao seu destino.
Leta Lestrange entre os irmãos Theseus e Newt (Fonte)
Uma personagem feminina (talvez a única) que não recebe esse tratamento deplorável por parte do enredo é a Tina, interpreta pela atriz Katherine Waterston. Ela tem a sua autonomia, a sua motivação – é uma auror que procura Credence tanto a serviço do MACUSA, quanto pela sua ligação pessoal com ele. Só que ela passa uma boa parte da história sumida! O que não deveria acontecer, já que a Tina integra o elenco principal e recorrente da saga. Não estou reclamando porque eu não curti as mulheres do filme, é porque eu queria ter visto MAIS sobre ELAS! Tantas personagens fascinates deixadas em segundo plano. Eu não vou nem falar sobre a assistente do Newt, cuja única função é dizer que ele devia tirar a camisa (deixando implícito que ela também é um interesse romântico do protagonista), nem daquela seguidora do Grindelwad, Rosier, que eu tive que fuçar no Google pra saber quem é. Ambas são, até agora, personagens secundárias e pouco relevantes, que não tem uma história própria ou motivação genuína, e mal tem nome durante a nova produção da série.
Recapitulando, Os crimes de Grindelwald deixa em segundo plano os personagens que não homens brancos. Já chega, né? Nope! Porque se esse personagem que é homem, e branco, também for queer, a franquia ainda vai ignorar categoricamente a sexualidade dele. Quando a gente acha que os pontos problemáticos desse filme acabaram…
Apagamento é homofobia, sim!
Isso aí, eu estou falando sobre Dumbledore (Jude Law) e Grindelwald (Johnny Depp). E para a gente entender direitinho o que isso significa, temos que voltar no tempo, lá em 2007. Foi nesse ano, após terminar o último livro da saga Harry Potter, que a escritora J. K. Rowling declarou que Alvo Dumbledore é gay.
Eu contei pra vocês que sempre fui fã da série, não é? Nos últimos livros, tanto o Harry quanto nós, os leitores, descobrimos a amizade entre o Dumbledore e o Grindelwald. A única coisa que a gente sabia, até então, era que Gellert Grindelwald tinha sido o maior bruxo das trevas antes de Voldemort, e que ele também tinha tentado exterminar os trouxas. Ainda me lembro de ler sobre como Dumbledore e Grindelwald eram amigos, sobre como eles planejavam aumentar o seu poder juntos, e que de alguma forma essa relação causou a morte da Ariana, a irmã do Dumbledore. Sobre como ele atrasou o seu confronto final com o Grindelwald, que por sua vez não ousava invadir Hogwarts. E eu me lembro de fechar o livro e pensar que, se o Dumbledore tivesse agido antes, poderia ter evitado tanta tragédia, tanta destruição. Nesse parte o Harry se sente traído, e eu vou te contar uma coisa, a gente também. De repente essa pessoa, esse grande bruxo que a gente tem escutado e seguido e admirado por todos esses anos, diz que foi amigo de uma pessoa tão ruim quanto o Voldermot, tão ruim quanto Hitler. É como se um dos seus professores mais queridos revelasse que já foi eleitor de certos políticos. E, porque a adolescência é um período muito dramático onde a gente acha que sabe tudo, eu me lembrar de pensar que eu jamais perdoaria o Dumbledore por isso.
Alvo Dumbledore na época que era ele diretor em Hogwarts, já mais velho, e ao lado, junto com Gellert Grindelwald na sua adolescência (Fonte)
Daí a Rowling disse que é gay e, lá em 2007, tudo fez sentido. Ela também disse que ele tinha se apaixonado pelo Grindelwald na juventude – seu então melhor amigo – o que o fez ignorar os defeitos e as falhas de caráter do outro bruxo. Nesse momento, eu fiz as pazes com o Dumbledore. Não porque estar apaixonado justifique o envolvimento dele com alguém como o Grindelwald, mas porque… Isso acontece, não é? Às vezes a gente se apaixona, e nem sempre consegue ver que a outra pessoa não é legal. Dumbledore não se aproximou do Grindelwald porque queria poder, e nem porque achava que ele estava certo em desprezar os não-bruxos. Ele não se recusou a enfrentar Grindelwald por medo, mas porque sabia que teria que matar o grande, e talvez o único, amor da sua vida. Na época eu achei isso lindíssimo, e infinitamente triste.
Entretanto, a Rowling foi criticada por só ter revelado esse detalhe após o final da série de livros. Era algo que a gente sabia ser verdade, mas nunca veria nos filmes. Então, não é exatamente representatividade, certo? Não adianta nada um personagem ser gay se isso fica escondido até na própria história. Um ponto positivo a favor da J. K. Rownling é que, após esse primeiro anúncio, ela sempre se manteve firme sobre a sexualidade do Dumbledore e ao longo dos anos até a defendeu dos “fãs” que reclamaram. Eu acredito que ela tenha mesmo planejado essa parte do enredo desde o início. Lembram quando o Dumbledore disse para o Harry que ele se olhava no espelho de Osejed e enxergava meias? E o Harry ficou com a sensação que ele estava mentindo? Pois é, eu realmente acredito que nessa época a Rowling já tinha decido que o Dumbledore ia ser gay, e que ele via o amor perdido dele quanto se olhava naquele espelho.
Provavelmente ela não quis inserir isso de forma aberta na história pra não causar um boicote ao livro, já que a saga é literatura juvenil e alguns pais – homofóbicos – podiam criar problemas. Talvez ela tenha até sugerido isso para um editor, que desencorajou a ideia. É algo que entra naquela categoria do “Harry Potter foi lançado entre vinte e dez anos atrás, não era o mesmo cenário de hoje”, e eu entendo. Juro que entendo. O que eu não entendo é porque, em pleno ano de 2018, essa mulher ainda não colocou um romance entre o Dumbledore e o Grindelwald em Animais Fantásticos. Qual é, nós somos literalmente o público perfeito pra ver isso! A gente já sabe que o Dumbledore é gay há uma década, nós estamos cobrando mais representação dela há anos, e nós não somos mais crianças! Existem crianças que curtem os filmes da saga, mas uma parcela gigantesca dos fãs são adultos, que cresceram lendo Harry Potter. Aquele medo inicial da reação dos pais mais conservadores perdeu a razão de ser faz tempo.
Fica a dúvida: por que ela está ignorando a sexualidade dos personagens? Hein? Se a sua resposta é “a gente não sabe se o Grindelwald é gay”, primeiro, você é covarde. Ele não precisa ser queer pro filme mostrar que o Dumbledore se apaixonou por ele. Além disso, todos nós já vimos muito bem a forma como ele – na figura do Graves – interagia com o Credence no primeiro filme. Grindelwald não tem nenhum escrúpulo em usar os sentimentos da outra pessoa para conseguir o que ele quer, mesmo que eles envolvam afeto e desejo. Vocês acham mesmo que ele não ia se envolver com o Dumbledore, que estava apaixonado por ele, só pra tirar vantagem disso? Hein? HEIN?
Pensando nisso tudo, minha única conclusão é que esse enredo desleixado, parecendo que foi feito nas coxas de Os crimes de Grindelwald é fruto da homofobia da produção. A Rowling precisava de um grande drama, algo que tornasse o confronto entre os dois maiores bruxos da época ainda mais complicado e emocionante. E aí, ao invés de usar uma narrativa que já estava pronta, onde os dois tiveram um envolvimento amoroso, ela decidiu transformar o Credence no irmão perdido do Dumbledore. Irmão que nunca foi mencionado até agora! Que não faz nem sentido! Se vocês leram os livros, vocês sabem que a história da família do Dumbledore foi aquela comoção toda. Ele só tem um irmão, Abeforth, que é dono do bar Cabeça de javali, e uma irmã que morreu na adolescência, a Ariana. E aí de repente o Credence é Aurélio Dumbledore? Sabe-se lá quantos anos mais novos que o Alvo e o Abeforth? De novo, isso não faz nenhum sentido. Quando eu estava vendo o filme e percebi que o Credence ia ser parente deles, na hora eu pensei: pronto, vai ser um filho da Ariana. Vão descobrir que ela engravidou quando ainda era adolescente, que não podia ficar com o bebê por algum motivo e ele foi criado longe da família. Ao menos faz mais sentido ele ser sobrinho que irmão do Dumbledore, até pela questão das idades. Se nos próximos filmes for revelado que esse é o enorme segredo da origem do Credence (agora Aurélio), lembrem-se que vocês ouviram a teoria aqui no Estanteante primeiro.
Jude Law como Dumbledore em Os crimes de Grindelwald (Fonte)
Não, ainda não me conformei que a Rowling resolveu jogar pra debaixo do tapete todas as possibilidades que a história oferece entre o Dumbledore e o Grindelwald, para me vir com essa ideia sem pé e nem cabeça de que o Credence é irmão dele. Não tem uma menção da sexualidade dos dois até aqui (tirando aquela tensão toda entre o Graves e o Credence no primeiro filme), quando é tão óbvio, e faz tanto sentido para a narrativa, que alguma coisa rolou entre eles. Ou Dumbledore estava apaixonado e o Grindelwald usou isso para manipulá-lo – da mesma forma como ele já se aproveitou da carência do Credence em Animais fantásticos e onde habitam – ou os dois estavam apaixonados, e o Grindelwald tinha essa ideia absurda de dominar o mundo ao lado do Alvo, mas aí o Dumbledore pulou fora quando ele percebeu que não queria ser casado com Hitler. De um jeito ou de outro, eles definitivamente deviam ter se beijado naquele flashback. Ou pelo menos no espelho de Osejed, né?
Essa relação entre os dois – genuína, complicada, assombrosa – poderia ser o drama do século! Do ponto de vista do argumento narrativo, da própria construção de mundo, e da trajetória de cada personagem, é uma trama que se encaixa muito melhor do que a ideia do pacto de sangue sozinho, ou o parentesco do Alvo com o Credence. E o fato de que a produção ignora isso e prefere recorrer às reviravoltas que não se sustentam no enredo, ao invés de lidar com a sexualidade dos personagens, é sim homofobia. Esse apagamento também é uma forma de discriminação. Um personagem gay ou queer cuja sexualidade nunca é mostrada na história, mesmo quando ela é relevante, não é uma boa representatividade. A saga pode fazer melhor que isso. Enquanto ela não fizer – e enquanto ela continuar perpetuando estereótipos racistas, e tratando tão mal as suas personagens femininas – ela segue me decepcionando.
Com nostalgia e tudo.
Lembrando que o post de hoje é a segunda parte da minha análise sobre Os crimes de Grindelwald. Quem ainda não leu o primeiro, vê se corre lá, hein?
O texto de hoje devia se chamar “Tudo que está errado em Os crimes de Grindelwald e como eu me exalto falando sobre Harry Potter”. Juro que no Twitter eu falo menos.
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