Você já conhece o Bombozila, a Netflix das lutas sociais? Veja as minhas indicações!

Hoje eu quero falar para vocês sobre o Bombozila – um catálogo com documentários independentes da América Latina e Caribe, além de outros países do mundo. Assim como a Netflix, o site é uma plataforma de streaming, onde você pode assistir todos os filmes disponíveis a hora que você quiser. A diferença é que o Bombozila é um serviço gratuito, e – o mais legal! – traz apenas documentários relacionados a ativismo e lutas sociais. O resultado disso é um arquivo amplo de informações, facilmente acessível pra quem precisa ou deseja saber mais sobre os diferentes aspectos da justiça social. Vale muito a pena conhecer.

A proposta é democratizar esse tipo de conteúdo, além promover maior diversidade da cena audiovisual contemporânea, valorizando as produções latino-americanas. Dá uma olhada no vídeo de divulgação do site, galera!

O site reúne mais de 400 documentários independentes (Fonte)

É uma ideia parecida com a Libreflix, que eu também já mostrei pra vocês aqui no blog. Vocês sabem que eu curto bastante documentários, e embora a Netflix apresente essa categoria, ela ainda deixa muito a desejar em volume dos títulos e variedade dos temas. Então é sempre bom ter mais opções, né? Principalmente para quem se interessa pelos debates políticos, sociais e ambientais, tão necessários hoje em dia.

O Bombozila tem muito conteúdo bacana. Alguns documentários são curtinhos e não duram mais do que poucos minutos, enquanto outros tem a duração de um média ou longa-metragem. Fundada pela comunicadora e jornalista chilena Sabina Alvarez junto com o cineasta brasileiro Victor Ribeira, a plataforma reúne trabalhos audiovisuais do Brasil e da América Latina de uma forma geral, mas abre espaço para documentários de outros países. Os temas são bem variados, e produtores e cineastas do mundo todo são encorajados a enviar projetos para o catálogo. Tenho certeza que cada um de vocês vai descobrir assuntos do seu interesse, mas para quem quiser indicações, vou deixar uma lista com alguns documentários que eu já assisti e recomendo.

Vou dar preferência para as obras nacionais, porque muitos títulos infelizmente ainda não tem legenda em português.

Protagonismo Trans (Brasil)

Direção: Luis Carlos de Alencar | Duração: 58min

Sinopse: Em Nova Iguaçu, mulheres trans da Baixada Fluminense (RJ) se encontram na boate Site Club para dialogarem sobre questões do seu dia-a-dia. Protagonismo Trans é o documentário que registrou essa pesquisa, realizada pela FIOCRUZ e denominada Protagonismo trans, processo transexualizador e atenção em HIV/aids: repensando políticas de saúde para (e com) travestis e transexuais numa perspectiva de integralidade. Saiba mais no site da produtora Couro de Rato. Assista o documentário aqui.

A dor reprimida (Brasil)

Direção: Mariana Sales | Duração: 27min

Sinopse: Uma em cada quatro mulheres brasileiras que deram à luz já sofreu violência obstétrica. O tratamento hostil, seja na hora do parto, do pré-natal, do puerpério (pós-parto) ou em uma situação de aborto é ainda mais comum entre as mulheres negras e de periferia. A dor reprimida: violência obstétrica e mulheres negras é o resultado do Trabalho de Conclusão de Curso da jornalista Mariana Sales, e discute os episódios de abuso, maus-tratos e negligência contra as mães. Veja no Bombozila.

Tierra arrasada (Uruguai)

Direção: Victor Burgos Barreiro | Duração: 26min

Sinopse: Produção que denuncia efeitos sociais, políticos, ambientais e econômicos da monocultura de soja transgênica na América do Sul. O documentário Tierra arrasada é protagonizado pelas comunidades indígenas e camponesas que ainda resistem, e lutam para defender o seu território contra a exploração desenfreada das multinacionais. De acordo com o diretor Victor Burgos, o seu objetivo é confrontar o modelo de cultivo da soja, e os efeitos que essa atividade provoca nos países onde se instala, como Paraguai e Brasil. Assista aqui (as legendas são apenas em espanhol, mas se você fala um pouco, dá para entender).

O que te torna viril (Brasil)

Direção: Fernanda Sá | Duração: 26min

Sinopse: O que te torna viril surgiu a partir de um incômodo em relação ao sistema das desigualdades de gêneros, que gerencia as relações sociais e movimenta as hierarquias e formas de viver. O documentário promove reflexões sobre essa construção social das masculinidades, colocando em perspectiva as vivências performativas do masculino, e discutindo os padrões de gênero. Veja no Bambozila.

Até que a morte nos separe (Brasil)

Direção: Realização: Felipe Cardoso, Larissa Laudano, Guilherme Barbosa | Duração: 21min

Sinopse: O filme retrata altos índices de feminicídio (morte de mulheres por razões de gênero) no Estado de Goiás. Entre os temas abordados estão a cultura de dominação masculina, a violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha. Na tentativa de levantar uma visão mais humana sobre o assunto, são mostrados depoimentos de familiares e a maneira com que a justiça lida com os casos, além de uma análise das influências que levam a números tão expressivos na região. Assista agora.

Holocausto Brasileiro (Brasil)

Direção: Daniela Arbex e Armando Mendz | Duração: 1h 30min

Sinopse: O documentário mostra o genocídio que aconteceu no Hospital Colônia em Barbacena (MG), enquanto discute questões atinentes ao papel social dos manicômios. “Os pacientes, internados à força, foram submetidos ao frio, à fome e a doenças. Foram torturados, violentados e mortos. Seus cadáveres foram vendidos para faculdades de medicina, e as ossadas comercializadas” (Revista Exame). Eu já falei sobre Holocausto Brasileiro aqui no Estanteante, talvez vocês se lembrem (se não, vale a pena conferir o post). Além do documentário, a Daniela Arbex também lançou um emocionante livro-reportagem. Assista no Bombozila.

E aí, gostaram das recomendações? Já tinham assistido esses? Contem pra mim!

Por fim, eu gostaria que vocês divulgassem o projeto. O Bombozila é o tipo de iniciativa que a gente precisa muito incentivar. Mostre para os amigos, colegas, parentes, alunos. Compartilhem os documentários da plataforma nas redes sociais, grupos de discussão e rodas de conversa. Em um momento como o que estamos vivendo agora, disseminar o conhecimento é algo fundamental. Que tal começar assistindo um documentário hoje mesmo? Vale até um (ou mais) dos curtinhos.


Se você tem algum documentário para indicar, deixa o título aí nos comentários!

She-Ra e as Princesas do Poder, e aquela “escola de princesas”

Algumas pessoas me recomendaram assistir She-Ra e as Princesas do Poder, sempre com comentários positivos. Eu não tinha dúvidas de que a produção seria bacana – por todas as análises e críticas que eu vi, já sabia que era um trabalho muito legal. E mesmo assim, eu andava enrolando para começar a assistir. Vocês sabem como é, tem bastante coisa boa passando ultimamente e não dá pra acompanhar tudo (juro, a maior parte das minhas séries favoritas estão atrasadas! Faz um tempão que eu não vejo nada de Crazy ex-girlfriend, Preacher ou Legion, que eu adoro).

Semana passada eu finalmente tirei um tempinho para ver a série, e admito que eu me arrependi de não ter começado antes. Imagino que vocês já estejam cansados de ouvir, mas ela é fantástica! Dá vontade de maratonar a temporada inteira de uma vez. Ainda falta mais ou menos um terço dos episódios para eu terminar, mas eu me apaixonei pela adaptação logo de cara. Para quem não sabe, a série animada She-Ra e as Princesas do Poder é uma produção da Netflix, uma nova versão daquele desenho clássico da She-Ra que fez parte da nossa infância – ela mesma, a irmã gêmea do He-Man.

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Mermista, Sea Hawk (Falcão do Mar), Perfuma e Entrapta, alguns dos personagens que ganharam versões atualizadas na nova série, She-Ra e as princesas do poder (Fonte)

Antes de escrever o texto de hoje, eu estive pensando no que eu poderia acrescentar à discussão, porque já saíram várias reflexões legais sobre a série – como os artigos que eu linkei no primeiro parágrafo. Então eu me lembrei de um caso que chamou a atenção alguns anos atrás, e ainda deve estar fresco na memória de vocês.

“Escola de princesas” e papéis de gênero

Se não me engano, foi em 2013 que nós ouvimos falar sobre a tal “escola de princesas” em Uberlândia, aqui em Minas Gerais. Na época, o estabelecimento gerou um enorme debate sobre a forma como a nossa sociedade educa suas meninas, reforçando papéis de gênero machistas e antiquados. Muita gente questionou, com razão, por que diabos a gente precisa ensinar às nossas garotas – e apenas a elas – boas maneiras e regras de etiqueta? Será que as meninas precisam mesmo aprender os valores de princesa, como “se maquiar, arrumar o cabelo, cozinhar e organizar a casa”? Nós devemos mesmo dizer a elas para “se guardar e esperar o príncipe encantado”? Pois é, eu estou tirando essas frases direto das reportagens sobre o local, em que os próprios idealizadores contam o que é ensinado na escola e quais “valores” eles transmitem para suas alunas.

A melhor coisa sobre esse tipo de ambiente é que ele funciona como um portal… para a Idade Média! Quem disse que viagem no tempo não era possível, hein?

Brincadeiras à parte, essa polêmica continuou quando, no mesmo ano, saíram notícias sobre a segunda edição do Girls Rock Camp Brasil – projeto de acampamento de férias para garotas, cujo tema central é o rock ‘n’ roll. O Girls Rock Camp é mesmo uma ideia maravilhosa – e continua firme e forte, galera! – que, através da música, ensina também autonomia, solidariedade, confiança e empoderamento feminino às garotas. É o tipo de ambiente onde meninas e jovens mulheres desconstroem clichês sobre o que é “lugar de mulher” na prática. Acho que nada do que eu disser pode fazer justiça a quão lindo e absolutamente incrível esse projeto é, então por favor, leiam o depoimento de uma das voluntárias do acampamento.

Eu sei que vocês estão se perguntando, mas o que isso tem a ver com a She-ra? Calma, eu já estou chegando lá.

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Uma das bandas no show de encerramento do Girls Rock Camp Brasil 2018 (Fonte)

Iniciativas como o Girls Camp Rock Brasil (e existem outras por aí) são muito válidas, e merecem todo o nosso apoio. Só que também é importante a gente questionar porque a ideia da princesa tem que ser associada a esses estereótipos machistas. Veja bem, é muito compreensível que meninas (e meninos!) se interessem por um universo repleto de fantasia, com castelos e carruagens e unicórnios. Brincar de princesa (e príncipe!) é algo que faz parte do imaginário infantil. Então por que não usar isso, essa magia, para ensinar conceitos positivos às crianças? Princesas não precisam ser decorativas, nem crescer para se tornar apenas um ideal reacionário de “mulher recatada e do lar”.

A sociedade adora desmerecer aquilo que interessa às garotas e qualquer assunto tido como coisa de menina. Ao invés disso, por que não valorizar os interesses das meninas? Se sua filha (ou sobrinha, afilhada, aluna) quer ser princesa, tem muita coisa bacana que você pode ensinar a ela além do jeito certo de segurar uma xícara de chá. Eu estou falando sobre liderança e autonomia, por exemplo. Se uma princesa está sendo preparada pra comandar um reino, é natural que ela aprenda a se impor, a valorizar as suas próprias opiniões e a ter auto-confiança, sabendo que suas decisões pessoais devem ser sempre respeitadas. Vamos falar sobre independência financeira, sobre o respeito a diferentes culturas, a importância de preservar recursos naturais. Podemos ensinar outras línguas e estimular as garotas a conhecer “reinos distantes”. Atividades esportivas como judô, que ensina defesa pessoal e disciplina. Vamos mostrar um pouco sobre várias áreas de interesse, reforçando que ela pode ser o que quiser no futuro: engenheira, baterista, médica, atleta, bailarina, veterinária, chefe de cozinha, artista, professora, astronauta, detetive, estilista. São alguns exemplos de valores que nós podemos ensinar às garotas, e nenhum deles impede que a gente faça da sala um castelo imaginário, ou do quintal uma floresta encantada. Aos garotos também, inclusive.

E, voltando à fantasia, por que não incluir nesse “faz de conta” luta de espadas, andar a cavalo, navegar os sete mares, praticar escalada, acampar na floresta mágica? Princesa também é sinônimo de aventura. O que impede uma menina de ser uma rainha-pirata como Elizabeth Swann em Piratas do Caribe, ou uma princesa-guerreira, como a Xena? Ou como Diana, a Mulher Maravilha, princesa e herdeira do trono das amazonas? Ou Leia Organa, que além de princesa se tornou general da rebelião em Star Wars?

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Os protagonistas da série: Glimmer, Bow e Adora, que se transforma em She-Ra (Netflix)

She-Ra e as princesas do poder faz tudo isso que eu falei aí em cima. O desenho uniu a figura mágica, encantadora e deslumbrante da princesa com um senso de autonomia, luta, coragem e independência. As princesas mostradas na série têm os seus interesses e ocupações, todos bem diversos entre si – She-Ra é uma combatente militar, Perfuma tem conhecimento sobre plantas, Entrapta é uma inventora que trabalha com robótica – e cada uma delas comanda um reino. Frosta organiza o baile e recebe os convidados com toda pompa, mas também toma decisões estratégicas e diplomáticas para garantir a segurança do seu povo. Na animação, lutar também é coisa de princesa. Isso é um ponto muito importante: a série não desmerece coisas “de menina”, mas acrescenta batalha e  aventura à lista. O que é absolutamente incrível. Se eu tivesse filhas ou filhos, esse é o tipo de história que eu gostaria que eles assistissem.

Vocês vão notar que ao longo do texto eu estou sempre trazendo os meninos para essa discussão porque eles também fazem parte do assunto. Quem acha que os garotos não gostam de contos de fadas, de castelos e carruagens e unicórnios, está muito enganado. O problema é que os garotos são coagidos desde cedo a não expressar interesse por esse tipo de história, já que isso é algo visto como “feminino” – um tremendo preconceito e ignorância, diga-se de passagem. Embora She-Ra e as princesas do poder dê um maior enfoque ao protagonismo feminino, a série também insere personagens masculinos no seu mundo mágico. Bow – o Arqueiro, em português – é um excelente exemplo, e um personagem fascinante.

Eu não falei muito sobre representação e diversidade no texto de hoje porque, como eu disse no início, muita gente já comentou a respeito. Então achei que seria melhor trazer a reflexão sobre a escola de princesas e acrescentar um ponto novo à conversa ao invés de repetir o que outras pessoas já falaram. Por isso eu deixei alguns links no primeiro parágrafo, com análises que abordam a questão da representatividade. Não deixem de ler! Mesmo assim, como uma imagem vale por mil palavras

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Uma comparação entre a série original e a nova adaptação da Netflix

Essa comparação é algo que eu quero deixar aqui, só para a gente ter uma boa ideia de como a nova versão da série é diversa. Deem uma olhada na imagem de cima, da série original. Não apenas quase todas as personagens são brancas, mas elas tem o mesmo tipo de corpo. Todas elas podiam ser a She-Ra com diferentes perucas. A única mulher que é negra está escondida lá no fundo, atrás de todo mundo.

Na foto que ilustra a adaptação da Netflix, nós temos até menos personagens, mas dá para ver que o elenco é muito mais diverso (algo que se reflete também nos dubladores escolhidos para dar voz a eles). A gente observa não só diversificação no tom da pele, mas em formato de corpo, em tipo de cabelo, figurino. Entre as personagens femininas, algumas vestem calça ou short, outras usam vestido. A roupa da She-Ra é um exemplo perfeito do que eu estava falando lá atrás: ela ainda é uma princesa, com sua tiara, um cabelo esvoaçante e os belos detalhes em dourado do figurino original. Porém, aqui a vestimenta dela é muito mais funcional, pensada para uma jovem guerreira que precisa lutar, andar a cavalo e realizar uma série de outras atividades físicas. O short por baixo da “saia” dá a ela todo o conforto e praticidade que a personagem necessita – o mesmo vale para as outras personagens, como a Glimmer, que usa uma capa de princesa e uma espécie de macacão confortável.

O adulto como público em produções infantis

Para concluir, uma última consideração: onde nós, os espectadores adultos, ficamos nas séries e filmes infantis? É claro que não tem o menor problema da gente curtir She-Ra e as princesas do poder, ou outras produções semelhantes. Aliás, tirando programas que são voltados para crianças muito pequenas – como Peixonauta e Dora, a exploradora – a maioria dessas produções são criadas para ser “diversão pra família toda”, mesmo. Nós podemos nos divertir com as histórias, fazer cosplay e todo o resto, mas é fundamental não esquecer que o público infantil existe e a série foi feita também e principalmente para ele. Repitam comigo: principalmente para ele. O que significa que não importa se você gosta ou não de crianças, não importa se você é um fã de verdade e já viu todos os episódios cinco vezes enquanto a criançada só assiste porque é colorido. É necessário respeitar esse público infantil, para quem o conteúdo foi feito em primeiro lugar – até porque existem animações feitas pro público adulto, como Desencanto, que podem ser uma escolha mais adequada se She-Ra não for bem a sua praia.

Sim, eu estou falando sobre aqueles marmanjos que ficaram se doendo todos só porque She-Ra e as princesas do poder, uma série infantil, foi criada pensando nas meninas e meninos que vão assistir o desenho, e não neles. E ainda tentaram estragar a diversão para esse público que, com razão, está adorando a série. Só que a gente mesmo também deve tomar cuidado para não acabar cometendo um erro parecido. Isso aí, até eu, você e outros adultos que não são babacas machistas também temos que nos policiar.

Quer um exemplo? Logo que saiu o primeiro trailer do novo Rei Leão, eu vi um monte de gente falando coisas como “esse filme é pra minha geração”, “criança não vai ter vez” e outras frases no mesmo nível. Qual é, pessoal, isso já é passar atestado de babaquice. Um filme que é a adaptação de um clássico infantil, lançado em plenas férias escolares, e vocês ainda estão dizendo que vão mesmo empurrar as crianças na fila do cinema? Nada te impede de curtir o filme junto com a criançada, ou procurar uma sessão mais vazia (dica: sessão mais tarde ou com legendas) ou, em último caso, esperar o filme chegar na internet e assistir no conforto e silêncio da sua casa. O que não dá é pra desrespeitar o público infantil, nem falar que criança não vai ter vez, numa produção que foi feita – de novo pra gente não esquecer – principalmente para eles. Talvez isso não signifique que vocês sejam tão egoístas e babacas como os marmanjos criticando a She-Ra, mas poxa, é meio caminho andado, né?

Eu sei que nós todos estamos empolgados pra assistir o filme, mas lembrem-se disso na fila do Rei Leão, lá em 2019, em plenas férias escolares.

Agora que eu disse o que tinha para dizer, eu preciso que todos os meus amigos assistam a série e me digam qual personagem eu seria. Quero ver se vocês me conhecem bem mesmo! Sem pressão, hein? Quem acertar ganha um bombom.


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Os Crimes de Grindelwald: racismo, machismo e homofobia na produção

No início da semana, eu postei a primeira parte do texto sobre Animais fantásticos: Os crimes de Grindelwald. Até aqui eu falei sobre o que eu achei do filme de uma maneira geral, e contei para vocês o que eu curti e o que eu mudaria no enredo. Hoje eu já quero fazer uma análise mais crítica, abordando exemplos de racismo, homofobia, machismo e misoginia na produção. Isso mesmo, galera: senta que lá vem textão.

Eu imagino que parece meio estranho eu dizer que gostei do filme e, mesmo assim, ter tanta coisa para criticar – como aconteceu com Rocky Horror Picture Show. A questão é que eu acredito na importância de analisar com senso crítico justo as obras que a gente gosta, porque é assim que a gente desenvolve um olhar consciente sobre essas mídias e produtos de entretenimento que nós consumimos. É fácil criticar um livro que não faz meu estilo de leitura, por exemplo, ou um filme que eu nunca assistiria porque não é de um gênero que eu curto. Por outro lado, reconhecer falhas nas produções que a gente adora é um exercício de autocrítica. Como fãs, às vezes a gente ignora (nem sempre de forma consciente) as mancadas dos nossos ídolos, ou das nossas produções favoritas. E é justamente quando nós devemos prestar mais atenção.

Gostar daquele filme, série ou livro que seja um pouco (ou muito) problemático não é o fim do mundo. Só que é preciso ter consciência crítica, estar aberto às reflexões sobre o conteúdo e admitir que algumas partes são problemáticas, sim. Especialmente quando envolve situações como racismo e transfobia. Isso não te faz menos fã, pelo contrário! A gente pode muito bem (e deve) curtir uma obra reconhecendo os momentos em que ela erra ou desaponta. É o que eu tento fazer com tudo o que eu assisto e leio.

Sobre o racismo de Hollywood

Convenhamos, um ponto muito problemático em todo o universo de Harry Potter é a representatividade de personagens não-brancos. E eu estou falando dos livros também. Não apenas os três personagens centrais (Harry, Rony e Hermione) são brancos, como a maior parte dos personagens que tem relevância para a história também é. “Ah, mas o Quim Shacklebolt é negro” – claro, mas ele é uma exceção. Dá para contar nos dedos os personagens negros de Harry Potter. Não vou nem brincar dizendo que nós temos mais Weasleys que pessoas negras na saga, porque isso provavelmente é verdade.

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A Armada de Dumbledore. Ao incluir um ou outro ator que não seja branco no elenco de apoio secundário, cria-se uma ilusão de diversidade. Isso é uma fachada. (Fonte)

Uma coisa que a Rowling faz em todos os livros da série é inserir personagens de etnias diferentes como pano de fundo, criando uma falsa sensação de diversidade. Falsa sim, porque esses personagens são relegados a papéis secundários, nós vemos muito pouco da sua história e parecem servir mais como objeto para motivar o desenvolvimento dos protagonistas. A gente tem as irmãs Patil, que são indianas; a Cho que é chinesa (aliás, a Rowling nunca esclareceu qual é a etnia da Cho, além de asiática – os fãs especularam por anos se ela é chinesa ou coreana e a  autora simplesmente nunca respondeu isso); e o Blásio e o Dino, que são negros… Todos eles com papéis bem pequenos na série. Nós podemos citar ainda personagens como Lino JordanAngelina Johnson, que também são negros e têm uma presença ainda menor na história, mesmo que Angelina tenha se casado com Jorge Weasley depois. Pode ser que a essa altura você esteja dizendo “ah, mas todos os outros alunos além do Harry, da Mione e do Rony são secundários”. Isso é uma falácia. Sim, os outros estudantes de Hogwarts são secundários, mas alguns deles tem participações maiores que acabam influenciando o rumo da narrativa – e todos esses, sem exceção, são brancos: Luna Lovegood, Neville Longbottom, Gina Weasley e até o Draco Malfoy, como antagonista.

Vou abrir uma tangente aqui só para a gente entender quando um personagem, mesmo não sendo um dos protagonistas, tem relevância para a narrativa. O “truque” é você se perguntar, “se ele ou ela não existisse, o quanto isso impactaria na história? Será que ele ou ela poderia ser facilmente substituído por outro personagem que realizasse as mesmas ações?” Quando a resposta é afirmativa, o personagem é muito mais parte da ambientação do que do elenco.

Agora, vamos aplicar isso aos nomes citados no parágrafo anterior. O Blásio Zabini e o Dino Thomas poderiam ser substituídos por qualquer outro personagem sem grandes repercussões no enredo, assim como as gêmeas Patil, cuja participação mais relevante foi, sei lá, ter ido ao Baile de Inverno com o Ron e o Harry. Um dos pontos-chave ali é que o Ron não convidou a Hermione, mas ficou morto de ciúmes ao vê-la acompanhando o Viktor Krum e ignorou o seu par a noite inteira. Rony não precisava ter convidado a Padma Patil para que isso acontecesse, ele poderia ter levado qualquer outra pessoa ao Baile e o resultado seria o mesmo. Na boa, se ele tivesse ido sozinho, o resultado ainda seria o mesmo – e que cena interessante a gente teria se ele e o Harry, sem conseguir achar um par, resolvessem ir juntos ao Baile de Inverno! O que, bem, não vem ao caso. Voltando ao racismoa gente pode dizer a mesma coisa sobre a Cho Chang. É, o Harry gostava dela quando ela era a namorada do Cedrico (mais um garoto branco), mas não foi isso que criou a rivalidade entre eles. Além de ambos jogarem Quadribol na mesma posição, o principal motivo da “competição” sempre foi o Torneio Tribruxo. Ou seja, se a Cho não existisse, ou se ela fosse apenas namorada do Cedrico e não tivesse qualquer relação com o Harry, pouca coisa seria diferente no enredo. Não é com ela que o Harry fica, no final das contas! E não é interessante que ela exista, também, apenas como um interesse romântico para personagens masculinos, que tem papéis mais significativos a desempenhar na história? Só que aí eu já estou entrando no próximo aspecto da minha crítica, então por hora vamos nos ater ao racismo velado da saga.

Já que eu estou desenterrando todos esqueletos no armário de Harry Potter, não dá pra gente esquecer o caso da Lilá Brown. Nos primeiros filmes, quando ela aparecia só no canto das cenas fazendo figuração, Lilá foi interpretada por atrizes negras – Jennifer Smith e Kathleen Cauley. Depois, quando os livros revelaram que ela se tornaria um interesse romântico pro Rony, colocaram a Jessie Cave no papel – uma atriz branca, loira, dos olhos claros. Quem precisa de continuidade quando a gente tem racismo, não é mesmo? E, recentemente, quando saiu o livro Harry Potter e a criança amaldiçoada e uma atriz negra foi escolhida para interpretar a Hermione, uma bando de gente racista achou ruim. Ainda que nos livros não seja dito, em nenhum momento, que ela é branca. O caso da Lilá reflete a solidão da mulher negra, que existe tanto na vida real quanto na ficção. O da Hermione expõe o racismo descarado de parte do público, que aceita pessoas negras nas produções, mas não em posição de destaque, não no lugar dos seus personagens queridinhos.

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A atriz Noma Dumezweni interpretou Hermione Granger, junto com Paul Thornley (Ron Weasley) e Cherrelle Skeete, que fez a filha deles, Rose Granger-Weasley (Fonte)

Até aqui eu falei apenas sobre Harry Potter para vocês entenderem que a série tem um histórico de apresentar protonistas brancos, enquanto joga pra escanteio personagens de outras etnias – embora eles existam para compor o cenário. A análise que a gente fez aqui sobre os estudantes se estende aos personagens adultos, basta você se perguntar quantos professores de Hogwarts não são brancos, ou ainda, entre os adultos que têm importância na série (como os que fazem parte da Ordem da Fênix e os que trabalham no Ministério, e até mesmo os vilões) quantos tem uma etnia que não seja branca. Pois é, o racismo não se trata apenas de ofensas e xingamentos. Apagamento e ausência de representatividade também são condutas racistas.

Contudo o primeiro livro da saga – Harry Potter e a pedra filosofal – foi lançado em 1997. Nós podemos dizer, “talvez isso seja meio racista, mas vários livros e filmes que a gente curtia na época eram, não tinha essa discussão sobre representatividade”. Eu concordo plenamente. Só que a gente esperava que, como Animais Fantásticos está sendo feito duas décadas depois, os filmes fossem… vocês sabem, menos racistas. Eles não são, é que está o grande problema.

Em Animais Fantásticos e onde habitam, a única personagem que não é branca e tem um impacto na narrativa é a Seraphina Picquery, interpretada pela atriz Carmen Ejogo. A gente até vê bruxos de várias partes do mundo quando o conselho se reúne no Macusa, mas nenhum deles têm uma história própria ou uma participação relevante. Dominique Tipper interpreta uma personagem que também não recebeu nem nome nos créditos, chamada apenas de Auror 1. E embora a presença da Seraphina seja muito legal – uma mulher negra como Presidente do mundo mágico nos Estados Unidos – o seu papel na história é ínfimo. Outros personagens de maior destaque, mesmo que secundários, são mais uma vez todos brancos: Tina, Queenie, Jacob, Credence (além de sua mãe e irmãs adotivas). Sem contar Newt e Percival Graves, o antagonista do primeiro filme. A nova franquia está cometendo os mesmos erros da saga Harry Potter no que diz respeito à falta de personagens que não sejam brancos, vinte anos depois. Não tem outro nome para isso, galera. É racismo.

Os crimes de Grindelwald até tenta incluir alguma diversidade, porém, de novo joga os personagens de lado. Arnold Guzman poderia ter sido interessantíssimo na trama, mas a sua figura não é bem explorada (o que poderia ter sido, por exemplo, se eles tivessem inserido um segundo filme entre os dois primeiros, como eu sugeri no texto anterior). E o ator Cornell John nem aparece em muitos dos principais materiais de divulgação – como a foto que ilustra o cabeçalho do post de hoje. Leta Lestrange, interpretada pela maravilhosa Zoë Kravitz, também merecia mais. Ao invés disso, ela teve pouco espaço na narrativa e ainda por cima morreu, ou seja: a gente não tem qualquer esperança que a personagem ganhe uma história melhor nos próximos filmes. Por último, a Nagini, que apesar da performance adorável da Claudia Kim já é um estereótipo racista.

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Por causa de uma maldição, Nagini vira uma cobra todas as noites. Eventualmente ela vai se tornar incapaz de se transformar em humana de novo (Warner Bros)

Claudia é sul coreana. Agora vocês me perguntam: e qual é o problema? Não era você que estava pedindo mais representação? É, só que eu pedi boa representação, e ganhei um clichê racista. Nagini parece ser, na verdade, uma junção de dois estereótipos muito presentes no cinema hollywoodiano quando falamos sobre mulheres asiáticas: a Dragon Lady e a China Doll, ou a “bonequinha de porcelana”.

A figura da Dragon Lady se baseia, principalmente, na mistificação da mulher oriental. Ela é misteriosa e exótica, porque vem de uma terra estrangeira. Bela, mas perigosa, e muitas vezes fatal. Embora a Nagini não seja agressiva em sua forma humana, ela ataca quando vira cobra e é descrita como uma criatura de alta periculosidade. Eu fiz questão de dizer criatura porque é assim que ela é retratada no mundo de Animais Fantásticos: menos que um ser humano, um dos animais mágicos que é exibido como atração em um espetáculo, presa numa jaula, e descrita pelo dono do circo como aberração. Claro, o próprio Credence também é chamado dessa forma, mas a trajetória dele é humanizada. Ao contrário da Nagini, nós o conhecemos antes de ser revelado que ele é um Obscuro. O público conhece a história do Credence e tem a oportunidade de empatizar com ele, além do fato dele ser um dos personagens principais, com maior autonomia e destaque no enredo – e, no fim das contas, nós ainda descobrimos que ele vem de uma linhagem poderosa de bruxos. Uma narrativa vastamente diferente da que a Nagini recebe.

Animais Fantásticos transforma um dos poucos personagens que não são brancos, e a única mulher asiática da franquia, num exemplo de mistificação e objetificação. Como se não bastasse, a gente já sabe que no futuro a Nagini vai se tornar a famosa cobra do Voldemort. Sem meias palavras: ela é uma mulher asiática – portanto, não-branca – que foi relegada a uma posição sub-humana, exibida como animal exótico, e ainda vai virar o bichinho de estimação do cara que é equivalente a Hitler no mundo da magia. É aí que a figura da Dragon Lady (uma mulher mágica, exótica e misteriosa, que oferece um enorme perigo) dá lugar à China Doll: a ideia da mulher asiática que está sempre em uma posição servil, submissa ao homem branco. Eu já linkei esse texto como referência lá em cima e vou linkar de novo, e não deixem de ler.

A forma como a Nagini é mostrada em Os crimes de Grindelwald faz parecer que J. K. Rowling estava brincando de um jogo chamado “quantos estereótipos racistas sobre mulheres asiáticas eu consigo enfiar em uma personagem”. E é uma pena, porque eu acho que a Claudia Kim teria feito um excelente papel se tivesse um material adequado para trabalhar. Inclusive abordando suas origens coreanas.

Misoginia e  machismo

Vocês perceberam que eu já entrei um pouco nesse tema do machismo ali em cima, ao falar sobre a Leta e a Nagini, né? A verdade é Os crimes de Grindelwaldpresta um desserviço enorme às suas personagens femininas. Uma coisa que Animais Fantásticos e onde habitam não faz! Enquanto no primeiro a Tina aparece como uma personagem relevante e cheia de autonomia, e outras mulheres da trama – Queenie e a Presidente Picquery – também tem os seus momentos de destaque, no segundo filme da série elas ficam simplesmente apagadas. Eu mencionei no texto anterior que o desenvolvimento de todos os personagens é prejudicado pelo salto temporal da história, mas quem sofre mais com isso sem dúvida são as mulheres.

Para começo de conversa, as mulheres do filme parecem existir apenas de acordo com a sua relação com um homem. Até a foto de divulgação sugere isso! Leta Lestrange é a futura esposa de Theseus Scamander (e antigo amor do Newt, sempre como interesse romântico), Nagini é uma espécie de ajudante de Credence, e Queenie é a namorada do Jacob. A exceção seria a Tina que, por sua vez, aparece menos e tem uma participação menos impressionante que no primeiro título da saga. Deveria ser justo o contrário, porque já foi estabelecido que a Tina é uma personagem recorrente na série, que deve continuar na história até o final. Só que, assim como o racismo, a misoginia é mais forte que a coerência por aqui.

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Cada um com o seu par – tirando os dois caras que são gays, porque eles sim tem que ficar em lados totalmente opostos da sala antes que os fãs comecem a ter ideias (Warner Bros)

Que tal a gente falar das personagens femininas uma por uma, então?

A Nagini, além de um estereótipo racista, não tem motivação própria no enredo. Pelo menos, não que a gente saiba, né? Ela está apenas ajudando o Credence, protegendo o Credence, e andando pela Europa atrás da mãe do Credence. Todos os objetivos dela, até o momento, não passam dos objetivos dele – e ele ainda a abandona no final. Nós podemos fazer suposições, claro. Talvez ele tenha prometido ajudá-la a fugir do circo se ela o ajudasse a encontrar sua família. Talvez eles tenham se identificado por serem os dois vistos como alheios ao mundo mágico, como criaturas ao invés de seres humanos, e a partir daí tenha surgido uma amizade. Talvez eles tenham se apaixonado, quem sabe? Ninguém, porque o filme jamais mostrou isso para a gente. Talvez ela estivesse mesmo planejando comer o Credence no jantar e a mãe dele como sobremesa, já que ela é uma cobra gigante e mais de duas horas de filme me contaram QUASE NADA sobre a relação dos dois. Pode ser que o título seguinte “amarre” as pontas soltas – por que a Nagini parece ser tão leal ao Credence, quando ele claramente não compartilha o sentimento? – mas isso não é mistério. Não é suspense. Isso é um enredo fraco que acha que, se jogar um monte de revelações bombásticas na cara do público, a gente não vai prestar atenção no fato de que o argumento narrativo é desleixado. E um tantinho machista.

Queenie, por outro lado, parece ter sido substituída pela sua gêmea malvada. Ela está… irreconhecível. Não há nenhum traço da bruxa leve, carismática e divertida que a gente viu no primeiro filme. O pior é que eu até entendo o que a Rowling quis fazer com o arco narrativo da personagem, só acho que foi mal executado. Brutalmente mal executado. A proposta é mostrar que até as pessoas mais doces, até quem a gente menos espera, podem ser seduzidas por um discurso de ódio, se estiverem desacreditadas o bastante. E sabe de uma coisa? Isso é ponto crucial, que precisa ser discutido mesmo – ainda mais nos dias atuais. Teria sido uma proposta interessante se o público tivesse a chance de acompanhar a transformação da Queenie, de uma mulher otimista, meiga e carinhosa, que tenta sempre ver o melhor lado da situação, para uma pessoa tão desiludida com o mundo a ponto de acreditar que alguém que prega apenas ódio, violência e preconceito pode ser a solução do problema. Como a gente não viu porque a franquia escolheu não mostrar isso, fica parecendo que a Queenie perdeu toda a noção da realidade de um dia para o outro – ou que foi substituída por um clone maligno.

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Alison Sudol interpreta Queenie, e queremos a gêmea boa de volta! (Fonte)

De personagem favorita para muitos espectadores, que conquistou os nossos corações em Animais fantásticos e onde habitam, a Queenie passa a ser essa figura meio tola, meio delirante, cuja motivação pra apoiar um vilão hediondo não faz muito sentido. Afinal, a gente sabe muito bem que o plano do Grindelwald inclui exterminar o Jacob! Claro, nós podemos dizer, “bem, a Queenie pode ter pensado que ele acabaria com os trouxas mas pouparia o Jacob, por causa da sua ligação com ela”. Isso levanta um debate muito válido, e seria um argumento excelente que eu adoraria ter visto no cinema, mas eu não vi já que o filme em momento algum toca nesse ponto. Então a Queenie continua parecendo meio tola, meio delirante, sem um pingo de senso crítico. Só porque a Rowling queria que o Grindelwald tivesse do seu lado um bruxo com capacidade de ler mentes. Toda a caracterização e o desenvolvimento de uma personagem feminina jogados pela janela, para ela servir como instrumento para avançar o arco narrativo do vilão – que, não por acaso, é um homem. Eu disse que Os crimes de Grindelwald trata muito mal as suas mulheres, não disse?

Por último, a Leta Lestrange. Eu já pontuei aqui que o papel dela é, acima de tudo, ser o interesse romântico pro Theseus e pro Newt – afinal, é por causa da Leta que a Tina se afasta dele. E ela cai naquele clichê terrível da ficção em que uma mulher, sempre uma mulher, acaba morrendo de forma trágica apenas para dar motivação a um personagem masculino. Isso é, sim, um sintoma da misoginia na ficção (e não vamos esquecer que o mesmo acontece com a ama do Credence quando bebê, e a mãe do Arnold). Além disso, a Leta é outra que recebe uma construção muito pobre no filme.

Sejamos sinceros: pelo jeito que Newt falou sobre a Leta em Animais fantásticos e onde habitam, a gente esperava que ela fosse uma vaca – pra não usar termo pior. Ela parece egoísta e vaidosa, e partiu o coração dele ao trocar o Newt pelo irmão Theseus. Não dá pra simpatizar com uma personagem assim, certo? Além, claro, dela ser uma Lestrange, uma família de puro-sangues notória pela sua associação com as artes das trevas. Aí a gente conhece a Leta em Os crimes de Grindelwald. Ela não é, de forma alguma, uma pessoa má. Se muito, ela foi uma criança que cresceu em um ambiente familiar tóxico e abusivo, que foi ostracizada na infância e na vida adulta, que cometeu um erro quando menina e nunca deixou de se culpar por ele. Ela é uma personagem complexa e com um potencial enorme que, mais uma vez, foi desperdiçado.

O público nunca a chega a saber de verdade, a entender, o que houve entre ela e Newt, e porque Leta escolheu Theseus. A gente percebe nas entrelinhas que ela se apaixonou por ele – e o ama o ponto de se sacrificar, caso isso dê a ele uma chance de sobreviver – mas a gente nem chega a ver a relação, essa cumplicidade entre eles. A cena em que Dumbledore tenta dizer a Leta que ela era uma boa aluna, e uma boa pessoa, é bonita, mas ela nunca encontra de verdade sua redenção. Até o momento da sua morte, Leta ainda acredita que ela é um monstro e não merece simpatia ou compaixão. No final, o seu sacrifício não é o desefecho da sua história, porque não desenvolve a trajetória da personagem, serve apenas como um artifício pra impelir os protagonistas masculinos em direção ao seu destino.

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Leta Lestrange entre os irmãos Theseus e Newt (Fonte)

Uma personagem feminina (talvez a única) que não recebe esse tratamento deplorável por parte do enredo é a Tina, interpreta pela atriz Katherine Waterston. Ela tem a sua autonomia, a sua motivação – é uma auror que procura Credence tanto a serviço do MACUSA, quanto pela sua ligação pessoal com ele. Só que ela passa uma boa parte da história sumida! O que não deveria acontecer, já que a Tina integra o elenco principal e recorrente da saga. Não estou reclamando porque eu não curti as mulheres do filme, é porque eu queria ter visto MAIS sobre ELAS! Tantas personagens fascinates deixadas em segundo plano. Eu não vou nem falar sobre a assistente do Newt, cuja única função é dizer que ele devia tirar a camisa (deixando implícito que ela também é um interesse romântico do protagonista), nem daquela seguidora do Grindelwad, Rosier, que eu tive que fuçar no Google pra saber quem é. Ambas são, até agora, personagens secundárias e pouco relevantes, que não tem uma história própria ou motivação genuína, e mal tem nome durante a nova produção da série.

Recapitulando, Os crimes de Grindelwald deixa em segundo plano os personagens que não homens brancos. Já chega, né? Nope! Porque se esse personagem que é homem, e branco, também for queer, a franquia ainda vai ignorar categoricamente a sexualidade dele. Quando a gente acha que os pontos problemáticos desse filme acabaram…

Apagamento é homofobia, sim!

Isso aí, eu estou falando sobre Dumbledore (Jude Law) e Grindelwald (Johnny Depp). E para a gente entender direitinho o que isso significa, temos que voltar no tempo, lá em 2007. Foi nesse ano, após terminar o último livro da saga Harry Potter, que a escritora J. K. Rowling declarou que Alvo Dumbledore é gay.

Eu contei pra vocês que sempre fui fã da série, não é? Nos últimos livros, tanto o Harry quanto nós, os leitores, descobrimos a amizade entre o Dumbledore e o Grindelwald. A única coisa que a gente sabia, até então, era que Gellert Grindelwald tinha sido o maior bruxo das trevas antes de Voldemort, e que ele também tinha tentado exterminar os trouxas. Ainda me lembro de ler sobre como Dumbledore e Grindelwald eram amigos, sobre como eles planejavam aumentar o seu poder juntos, e que de alguma forma essa relação causou a morte da Ariana, a irmã do Dumbledore. Sobre como ele atrasou o seu confronto final com o Grindelwald, que por sua vez não ousava invadir Hogwarts. E eu me lembro de fechar o livro e pensar que, se o Dumbledore tivesse agido antes, poderia ter evitado tanta tragédia, tanta destruição. Nesse parte o Harry se sente traído, e eu vou te contar uma coisa, a gente também. De repente essa pessoa, esse grande bruxo que a gente tem escutado e seguido e admirado por todos esses anos, diz que foi amigo de uma pessoa tão ruim quanto o Voldermot, tão ruim quanto Hitler. É como se um dos seus professores mais queridos revelasse que já foi eleitor de certos políticos. E, porque a adolescência é um período muito dramático onde a gente acha que sabe tudo, eu me lembrar de pensar que eu jamais perdoaria o Dumbledore por isso.

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Alvo Dumbledore na época que era ele diretor em Hogwarts, já mais velho, e ao lado, junto com Gellert Grindelwald na sua adolescência (Fonte)

Daí a Rowling disse que é gay e, lá em 2007, tudo fez sentido. Ela também disse que ele tinha se apaixonado pelo Grindelwald na juventude – seu então melhor amigo – o que o fez ignorar os defeitos e as falhas de caráter do outro bruxo. Nesse momento, eu fiz as pazes com o Dumbledore. Não porque estar apaixonado justifique o envolvimento dele com alguém como o Grindelwald, mas porque… Isso acontece, não é? Às vezes a gente se apaixona, e nem sempre consegue ver que a outra pessoa não é legal. Dumbledore não se aproximou do Grindelwald porque queria poder, e nem porque achava que ele estava certo em desprezar os não-bruxos. Ele não se recusou a enfrentar Grindelwald por medo, mas porque sabia que teria que matar o grande, e talvez o único, amor da sua vida. Na época eu achei isso lindíssimo, e infinitamente triste.

Entretanto, a Rowling foi criticada por só ter revelado esse detalhe após o final da série de livros. Era algo que a gente sabia ser verdade, mas nunca veria nos filmes. Então, não é exatamente representatividade, certo? Não adianta nada um personagem ser gay se isso fica escondido até na própria história. Um ponto positivo a favor da J. K. Rownling é que, após esse primeiro anúncio, ela sempre se manteve firme sobre a sexualidade do Dumbledore e ao longo dos anos até a defendeu dos “fãs” que reclamaram. Eu acredito que ela tenha mesmo planejado essa parte do enredo desde o início. Lembram quando o Dumbledore disse para o Harry que ele se olhava no espelho de Osejed e enxergava meias? E o Harry ficou com a sensação que ele estava mentindo? Pois é, eu realmente acredito que nessa época a Rowling já tinha decido que o Dumbledore ia ser gay, e que ele via o amor perdido dele quanto se olhava naquele espelho.

Provavelmente ela não quis inserir isso de forma aberta na história pra não causar um boicote ao livro, já que a saga é literatura juvenil e alguns pais – homofóbicos – podiam criar problemas. Talvez ela tenha até sugerido isso para um editor, que desencorajou a ideia. É algo que entra naquela categoria do “Harry Potter foi lançado entre vinte e dez anos atrás, não era o mesmo cenário de hoje”, e eu entendo. Juro que entendo. O que eu não entendo é porque, em pleno ano de 2018, essa mulher ainda não colocou um romance entre o Dumbledore e o Grindelwald em Animais Fantásticos. Qual é, nós somos literalmente o público perfeito pra ver isso! A gente já sabe que o Dumbledore é gay há uma década, nós estamos cobrando mais representação dela há anos, e nós não somos mais crianças! Existem crianças que curtem os filmes da saga, mas uma parcela gigantesca dos fãs são adultos, que cresceram lendo Harry Potter. Aquele medo inicial da reação dos pais mais conservadores perdeu a razão de ser faz tempo.

Fica a dúvida: por que ela está ignorando a sexualidade dos personagens? Hein? Se a sua resposta é “a gente não sabe se o Grindelwald é gay”, primeiro, você é covarde. Ele não precisa ser queer pro filme mostrar que o Dumbledore se apaixonou por ele. Além disso, todos nós já vimos muito bem a forma como ele – na figura do Graves – interagia com o Credence no primeiro filme. Grindelwald não tem nenhum escrúpulo em usar os sentimentos da outra pessoa para conseguir o que ele quer, mesmo que eles envolvam afeto e desejo. Vocês acham mesmo que ele não ia se envolver com o Dumbledore, que estava apaixonado por ele, só pra tirar vantagem disso? Hein? HEIN?

Pensando nisso tudo, minha única conclusão é que esse enredo desleixado, parecendo que foi feito nas coxas de Os crimes de Grindelwald é fruto da homofobia da produção. A Rowling precisava de um grande drama, algo que tornasse o confronto entre os dois maiores bruxos da época ainda mais complicado e emocionante. E aí, ao invés de usar uma narrativa que já estava pronta, onde os dois tiveram um envolvimento amoroso, ela decidiu transformar o Credence no irmão perdido do Dumbledore. Irmão que nunca foi mencionado até agora! Que não faz nem sentido! Se vocês leram os livros, vocês sabem que a história da família do Dumbledore foi aquela comoção toda. Ele só tem um irmão, Abeforth, que é dono do bar Cabeça de javali, e uma irmã que morreu na adolescência, a Ariana. E aí de repente o Credence é Aurélio Dumbledore? Sabe-se lá quantos anos mais novos que o Alvo e o Abeforth? De novo, isso não faz nenhum sentido. Quando eu estava vendo o filme e percebi que o Credence ia ser parente deles, na hora eu pensei: pronto, vai ser um filho da Ariana. Vão descobrir que ela engravidou quando ainda era adolescente, que não podia ficar com o bebê por algum motivo e ele foi criado longe da família. Ao menos faz mais sentido ele ser sobrinho que irmão do Dumbledore, até pela questão das idades. Se nos próximos filmes for revelado que esse é o enorme segredo da origem do Credence (agora Aurélio), lembrem-se que vocês ouviram a teoria aqui no Estanteante primeiro.

Fantastic Beasts: The Crimes of Grindelwald

Jude Law como Dumbledore em Os crimes de Grindelwald (Fonte)

Não, ainda não me conformei que a Rowling resolveu jogar pra debaixo do tapete todas as possibilidades que a história oferece entre o Dumbledore e o Grindelwald, para me vir com essa ideia sem pé e nem cabeça de que o Credence é irmão dele. Não tem uma menção da sexualidade dos dois até aqui (tirando aquela tensão toda entre o Graves e o Credence no primeiro filme), quando é tão óbvio, e faz tanto sentido para a narrativa, que alguma coisa rolou entre eles. Ou Dumbledore estava apaixonado e o Grindelwald usou isso para manipulá-lo – da mesma forma como ele já se aproveitou da carência do Credence em Animais fantásticos e onde habitam – ou os dois estavam apaixonados, e o Grindelwald tinha essa ideia absurda de dominar o mundo ao lado do Alvo, mas aí o Dumbledore pulou fora quando ele percebeu que não queria ser casado com Hitler. De um jeito ou de outro, eles definitivamente deviam ter se beijado naquele flashback. Ou pelo menos no espelho de Osejed, né?

Essa relação entre os dois – genuína, complicada, assombrosa – poderia ser o drama do século! Do ponto de vista do argumento narrativo, da própria construção de mundo, e da trajetória de cada personagem, é uma trama que se encaixa muito melhor do que a ideia do pacto de sangue sozinho, ou o parentesco do Alvo com o Credence. E o fato de que a produção ignora isso e prefere recorrer às reviravoltas que não se sustentam no enredo, ao invés de lidar com a sexualidade dos personagens, é sim homofobia. Esse apagamento também é uma forma de discriminação. Um personagem gay ou queer cuja sexualidade nunca é mostrada na história, mesmo quando ela é relevante, não é uma boa representatividade. A saga pode fazer melhor que isso. Enquanto ela não fizer – e enquanto ela continuar perpetuando estereótipos racistas, e tratando tão mal as suas personagens femininas – ela segue me decepcionando.

Com nostalgia e tudo.

 

Lembrando que o post de hoje é a segunda parte da minha análise sobre Os crimes de Grindelwald. Quem ainda não leu o primeiro, vê se corre lá, hein?


O texto de hoje devia se chamar “Tudo que está errado em Os crimes de Grindelwald e como eu me exalto falando sobre Harry Potter”. Juro que no Twitter eu falo menos. 


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